domingo, 29 de maio de 2016

Cila, Loendro e Digitalis remédios para o coração.

Os homens de laboratórios, perdidos nas nuvens da pesquisa e desacreditados pelos médicos pragmáticos, não perderam minutos. Embora no momento suas experiências não fossem de valia para os hidrópicos, traziam no bojo futuras bênçãos. Tinham revelado “pistas”, advindas da fusão de informações esparsas, obtidas aqui e ali e afinal correlacionadas. E com as novas revelações dos laboratórios iam elas sendo dispostas como peças dum puzzle.
- A digitális, dizem eles, cura a hidropisia porque determina isto e isto no coração. O mesmo efeito é assegurado pela cila e o loendro. Será que todas essas plantas encerram um mesmo princípio atuante, sendo possível que isso se revele em experiências feitas com animais? Talvez. Talvez estejamos revelando toda uma nova família de agentes químicos. Talvez  estejamos na iminência de encontrar novos membros dessa família, com iguais efeitos no coração enfermo.
Loendro é árvore ornamental 
Mas para onde se voltarem? Aqueles corpos químicos não podiam ser privilegio só daquelas plantas; e experimentar milhares e milhares de plantas não era coisa prática. Súbito, verificaram que havia outro caminho: estudar as plantas já de séculos apontadas por tribos selvagens.
Certo dia em um laboratório russo, dois sábios examinaram a tintura duma planta de Madagascar, a venenosa Tanghinia que os nativos da ilha usavam nos ordalios da sua barbara justiça. “Se como esta semente e não morre, é que está inocente; se morre isso mostra que é criminoso”. E a prova da criminalidade era tremenda, tal o numero das vitimas do veneno...
 Os russos estudaram a tanghinia e no começo só verificaram ser um veneno muito interessante. Os animais submetidos á prova lentamente enrijeciam e morriam, mas o que a autopsia revelou fez os dois sábios levassem pessoalmente uma comunicação científica a Paris.
“Verificamos que a Tanghinia em doses fortes mata os animais do mesmo modo que a digitalis. Em doses menores fortalece o coração, tal qual a digitalis”.
De volta a Russia os dois sábios começaram a importunar seus colegas.
-Os franceses elogiaram a nossa comunicação, mas agora onde encontrar mais destes venenos de ordalio – mais tintura de plantas que influam no coração?
Um grande explorador russo, em São Petersburgo, respondeu-lhes:
- Venham ao meu laboratório. Creio que ainda há cá um pouco de Ipoh.
- Ipoh?
- Sim. Não é um veneno de ordalio, mas sim veneno de flecha extraído de árvore antiáris, da Malaia. Nunca ouviram falar? Pois é uma árvore cujo perfume mata todos os pássaros e animais que o respiram. É fácil adivinhar a aproximação duma dessas árvores, porque já de milhas em redor o chão aparece recoberto de esqueletos.


Bibliografia: Mágica em Garrafas, A história dos Grandes Medicamentos – Milton Silverman – tradução de Monteiro Lobato – Cia Editora Nacional 1943

sábado, 21 de maio de 2016

O valor de uma droga depende de quem a administra

A história da digitális não estava completa em todos os seus detalhes, como ainda não está até hoje, mas havia assentado as suas linhas mestras. Isso, entretanto, não evitava que grandes médicos fizessem ouvidos moucos e a pusessem de lado.
Quem era afinal de contas, esse Mackenzie? Um prático apenas. E quem era Cushny? Um selvajão que viera de Michigan com estranhas novidades na cabeça. E Weckebach? Um sonhador lá da Holanda.

Finalmente em 1910, Mackenzie em pessoa conduziu o ataque contra a Harley Street, o feroz reduto do conservantismo hipocrático. Provou que os grandes especialistas da Harley Street estavam sacrificando os seus pacientes com a teima de não atentar nos conhecimentos adquiridos. Mackenzie foi ouvido – mas não como queria.
Anos antes havia inventado um aparelho para auscultar o coração. A gente da Harley Street exclamou: “Céus! Eis aqui um grande inventor, embora seja médico rural. Elejamo-lo para o Colégio de Médicos. Concedamos-lhe honras e uma posição remunerada”.
Mackenzie beneficiou-se com as honras e uma condecoração. Mas o novo Sir James Mackenzie era o mesmo velho Dr Mackenzie que não gostava de ver doente morrerem em consequência da teimosia anticientífica. Desagradava-lhe
Ver-se aplaudido por ter inventado um simples aparelho e não pela descoberta do mecanismo da hidropisia. Mas a Haley Street não percebia nada. Continuavam a honra-lo apenas por causa da invenção.
Só muito tempo depois é que a vitória científica da digitális se afirmou. Cushny e Mackenzie já estavam mortos e Wenckebach se aposentara; mas os discípulos desses três grandes homens se fizeram campeões de suas ideias. Hoje, graças a esse esforço, a medicina moderna sabe o que é e o que não é a digitalis. Tais homens completaram a grande vitória da medicina sobre as doenças do coração e também ensinaram aos caçadores-de-drogas uma lição fundamental: O valor de uma droga é em parte determinado pelo cérebro do homem que a administra.
Durante anos, armados de fatos, os cientistas lutavam contra a superstição e a ignorância, só alguns médicos haviam notado que a digitális influía no coração. Se viesse a falhar nessa influencia no coração, ai do doente!
Mas isso vinha da má memoria dos médicos, porque durante séculos, antes do conhecimento da digitális, já havia tratamento para os hidrópicos. Usavam a cila e a cebola marinha do Mediterrâneo. Usava cozimento de folhas de loendro outro velho medicamento cardíaco.

Bibliografia: Mágica em Garrafas, A história dos Grandes Medicamentos – Milton Silverman – tradução de Monteiro Lobato – Cia Editora Nacional 1943

domingo, 15 de maio de 2016

Homens de ciências isolam princípios ativos da digitalis.

Esses homens de ciência e outros que a eles se juntaram pareciam ter resposta para todas as perguntas. Tomando as folhas da digitalis fizeram o que o Sertuerner, Pelletier e Caventou haviam feito para o opio e a quina – delas extraíram o principio operante, a digitalina, como denominou Nativelle, isso meses antes do rompimento da guerra franco-prussiana.

Alguns anos mais tarde a coisa foi novamente descoberta na Alemanha pelo famoso Schmiedeberg o qual, talvez empolgado pela hestoria da guerra, esqueceu a digitalina do francês  Nativelle e lançou a digitoxin. Não era alcaloide como a morfina e a quinina, mas aparentemente um produto complexo em que entrava um açúcar.
A divergência entre a prática dos médicos e a exatidão científica ia aos poucos desaparecendo. As doses cavalares e a aplicação da digitalis na tuberculose foram cessando. As novas gerações médicas mostravam-se mais científicas.
-Muito bem, diziam esses doutores. Os cientistas provaram que a digitalis não cura a tuberculose, mas a cura a hidropisia. Resta que nos digam o como dessa cura. Que faz a digitalis para o coração? Por que certas criaturas ficam hidrópicas? Que tem a ver com isso o coração? Por que não cura a digitalis todos os hidrópicos?
- Hidropicos? Doentes? Nós nada temos com isso, respondiam os homens de laboratório. Não é da nossa repartição. Mas atentem no que encontamos a propósito da constituição da digitalis.
Os médicos desanimavam. A eles não interessavam os problemas de química pura. Só queriam curar os doentes. Já os químicos puros não interessavam os doentes. Só queriam resolver problemas de química pura – e experimentavam em ratos e rãs e provetes. Fazia-se mister o aparecimento dum grande homem que harmonizasse os dois campos.
O primeiro grande homem a aparecer foi Arthur Cushny, que fora da Escócia para a Universidade de Michigan ensinar matéria médica e depois se passara para a Universidade de Londres. Cushny sabia lidar com a digitalis no laboratório mas não ignorava que a função da medicina é curar homens e não rãs.
O segundo foi o bom Dr. Wenckebach, a princípio um obscuro médico rural na Holanda e depois medico de uma família importante. E, por fim, o terceiro fpoi o escocês James Mackenzie, no começo muito contente com a sua habilidade de médico rural e depois atrapalhado com a fama de “maior especialista vivo” em doenças cardíacas. Mackenzie era de fato um grande clinico que desenvolvera o seu próprio diagnóstico, o seu próprio tratamento, a sua própria cirurgia, a sua própria obstetrícia e a sua própria anestesia – e que realmente estudara o funcionamento do coração.
Estes três sábios mostraram que a hidropisia provinha duma estranha doença dos músculos superiores do coração doença que enfraquecia os movimentos dessa bomba de bombear sangue. Não realizando o bombeamento coma força necessária, a circulação do sangue demorava e o soro ia ficando pelo caminho, nos membros, no peito, no ventre. Era o que a ciência de hoje chama “filtração auricular”. Para esse distúrbio a digitalis trazia alivio imediato e muitas vezes cura, afastando a morte inevitável. Mas a digitalis só agia assim quando administrada com proposito, e não as cegas como faziam a maior parte dos doutores.

Bibliografia: Mágica em Garrafas, A história dos Grandes Medicamentos – Milton Silverman – tradução de Monteiro Lobato – Cia Editora Nacional 1943

segunda-feira, 9 de maio de 2016

A digitalis não cura tuberculose

Nada é mais espantoso que a ignorância na medicina de 1800 sobre a verdadeira substancia da descoberta de Withering; repetia absurdos por ele destruídos. Withering reconhecera com a maior certeza os efeitos da digitális e provara do modo mais completo que era nula a sua ação na tuberculose. Proclamara com vigor que digitális tinha o poder de ativar o coração em grau nunca observado com nenhum outro medicamento. Mas os clínicos só acreditavam no que queriam acreditar. Mas os clínicos só acreditavam no que queriam acreditar. Como necessitassem de remédio para a tuberculose, admitiam o efeito da digitalis e nisso ficavam. E iludiam-se a si mesmos dizendo: “A tuberculose será daqui por diante curada tão regularmente com a digitális como a malária o é com a casca peruviana.”
Impossível uma situação mais estupida e desesperante. O específico da tuberculose estava encontrado – e nem um só doente sarava!...
digitális também continuava pessimamente usada na hidropisia. Withering explicara muito bem o modo correto da aplicação, mas já estava morto e ninguém se lembrava de ler o que ele havia escrito.
E, ainda mais, Hahnemann o fundador da homeopatia, repeliu o livro de Withering, ao afirmar que “além da digitális produzir dores de cabeça, tontura e mais coisas a sua utilidade era muito limitada”. E heróis da medicina, como Laennec, descobridor do estetoscópio e Corvisat, médico de Napoleão, nem sequer admitiam que a digitális fosse boa para os hidrópicos.
Por outro lado havia os fanáticos na eficácia, quando não viam fazer efeito, entravam pelo caminho das doses cavalares – e aí dos pacientes!
E foi assim que trinta anos após á morte de Withering a digitális teve de novo de ir-se recolhendo aos bastidores em virtude de miúdas ciumeiras profissionais, do uso da ignorância de muitos médicos. “A digitális devia curar a tuberculose, mas não o fez”, era o epitáfio que a esperava. Mas nesse momento acudiram-lhe salvadores. Não médicos de renome. Vinham dos laboratórios e clinicas, e terçavam as armas da evidencia cientifica. A marcha desse exército foi exasperadamente morosa, mas continua. Os novos paladinos colecionavam fatos e contra fatos não valem argumentos.
digitális cura a tuberculose? Atentai na lista dos doentes tratados. Milhares tiveram esse tratamento e que sucedeu? Morreram todos. De que? De tuberculose
É a digitális um tratamento perigoso para hidropisia?
Não quando usada com discernimento, isto é, com as dosagens bem calculadas para cada caso individual, como Withering acentuou.


Bibliografia: Mágica em Garrafas, A história dos Grandes Medicamentos – Milton Silverman – tradução de Monteiro Lobato – Cia Editora Nacional 1943

terça-feira, 3 de maio de 2016

A tuberculose abrevia o caminho da cura da hidropisia.

A notícia da cura daquela terrível doença começou a se espalhar e, de boca em boca, lá se foram os detalhes do tratamento da Escócia para a Inglaterra. O número de hidrópicos curados aumentou. Foi quando Withering descobriu que outro médico andava procurando reclamar para si a gloria daquele triunfo. E quem era ele? Justamente o homem que tanto o ajudara até ali – Dr Erasmus Darwin...
Erasmus Darwin avô de Charles Darwin
Nada mais absurdo, mas era a pura verdade. Um filho desse médico de nome Charles, havia morrido dois anos antes, aos vinte anos de idade, deixando uma dissertação sobre a hidropisia, a qual, depois de sua morte, veio a publico por agencia do Dr. Erasmus. No apêndice da obra este médico enfileirou nove casos de hidropisia curados com a digitalis – mas não houve menção no nome de Withering...
Withering assombrou-se. Naquele folheto dos dois Darwins aparecia em escrito a primeira  menção das curas da hidropisia pela digitalis, e o primeiro nome da lista era o do tal hidrópico desenganado pelo Dr Erasmus e que ele salvara!
O abalo em Birmingham foi grande; toda gente sabia que a obra de winthering e outro procurava lesa-lo, apresentando-a ao mundo como sua e do filho.
E que poderia o lesado fazer? Exigir reparação? Desafiá-lo para um duelo? Gritar “Pega Ladrão?”
Durante meses viveu Withering  esmagado pelo incompreensível procedimento do seu colega, mas continuou a acumular mais dados sobre o assunto e a tratar de novos doentes. Isso, com a continuação dos seus estudos de mineralogia e de botânica geral. Sua tosse não passava antes se agravava – e por fim ele próprio se declarou tuberculoso.
Foi piorando. Apesar de moço ainda, apenas entrando na casa dos quarenta anos, teve de ir abandonando a clinica. Em 1785, aos 44 anos de idade, já com dez anos de observação da digitalis, achou que era tempo de publicar as suas conclusões.
E era tempo realmente, pois muitos médicos prosseguiam no uso da digitális para a tuberculose, a escrófula e muitas outras doenças em que Withering verificara o seu nenhum efeito. E as aplicações na Hidropisia não se orientavam por nenhum seguro critério de dosagem.
O livro de Withering saiou sob o título de Noticia sobre a Luva-de-raposa e alguns de seus usos médicos, com observação práticas sobre a hidropisia e outras doenças. Era obra da maior importância e que ficou como marco assinalador duma das grandes descobertas medicas de todos os tempos.
A publicação desses estudos trouxeram grandes honras para o autor: admissão na Royal Society, diploma da Sociedade Médica de Londres, e da Linnaean Society – e tornou-o um dos mais ricos e proeminentes médicos da Inglaterra.
Mas honras e riquezas nada valem contra a tuberculose. Por onze anos lutou Withering contra aquele mal, vindo a retirar-se da vida ativa em 1796, aos 55 anos. Três anos mais tarde falecia.
No anos de sua morte quase todos os jornais médicos trouxeram notas sobre o emprego da digitalis na cura, não da hidropisia, mas da tuberculose! O mundo médico errara o alvo...


Bibliografia: Mágica em Garrafas, A história dos Grandes Medicamentos – Milton Silverman – tradução de Monteiro Lobato – Cia Editora Nacional 1943