domingo, 31 de julho de 2016

Descobrindo o vicio da cocaína.


Em uma manhã de verão de 1884, três jovens doutores sentaram-se preocupados numa sala do grande Hospital geral de Viena. Dois deles entreolhavam-se, enquanto o terceiro lia o boletim dum paciente; ao terminar, largou o boletim sobre a mesa e voltou-se para os outros.
- Francamente, se hores, a conclusão parece ser uma só. Temos aqui um paciente que – sim, Dr Freud, eu hesito na palavra – que me parece viciado na cocaína.
Sigmund Freud enrugou a testa.
- Perdão, Dr. Bruer, mas custa-me a crer nisso. Meu paciente pode estar envenenado pela cocaína. Talvez eu lhe tenha dado uma dose excessiva. Mas, viciado?... Isso não posso compreender. A cocaína não vicia. E o método americano que usei é de inteira confiança.
- E que método é esse? Perguntou Breuer.
- É o adotado já de dez anos pelo Dr. Bentley, no Kentucky. Esse americano descobriu que os viciados pelo álcool e pela morfina, podem curar-se por meio da cocaína. Tratamento admirável, Dr. Breuer!
-Admirável?

- Sim, reafirmou Freud. Espero que em poucos anos possamos, eliminar o vicio da morfina com este alcaloide.
Breuer tomou de novo o boletim, dizendo:
- Faço votos para que esteja errado, mas o caso presente não fala a favor do método americano. Parece que o paciente é um medico que se viciou com a morfina depois de sofrer a amputação do polegar esquerdo. Estou certo?
- Sim. Procuramos cura-lo da morfina, mas o seu sofrimento foi tanto que tivemos de recorrer à cocaína.
- E isso fez desaparecer o desespero pela morfina?
- Perfeitamente, assegurou Freud.
- E quando quis interromper o emprego da cocaína?
Freud mexeu-se na cadeira.
- Bem, é isso o que eu não compreendo. Logo que interrompi a cocaína, sobrevieram alucinações, miragens...
- Ele vê serpentes, diz o boletim.
- É verdade – vê serpentes, dragões e indescritíveis horrores. Diz que esses monstros procuram agarra-lo. Mas estou inclinado a crer que me acho diante dum caso excepcional. Não creio que seja típico.
- Pode ser, aventou Breuer – mas como pretende agir?
- Experimentalmente, senhor. Precisamos realizar uma serie de experiências sobre a ação da cocaína nas criaturas humanas. E gostaríamos de obter a sua permissão para usar os laboratórios do hospital e os aparelhos necessários.
- Ótima ideia. E quem fara as experiências?
- Carl Koller, um moço de vinte anos.
- O Dr Freud, disse Koller, pediu-me para colaborar com ele nesse trabalho. E tenho ideia de convidar também o meu amigo Dr Koenigstein.
Breuer olhou para aquele moço de pequena estatura e calmo.
- Bem, Koller. Já tenho ouvido falar dos seus trabalhos. Ponha-me ao par do que for apurado.

Bibliografia: Mágica em Garrafas, A história dos Grandes Medicamentos – Milton Silverman – tradução de Monteiro Lobato – Cia Editora Nacional 1943

domingo, 24 de julho de 2016

A descoberta cocaína como anestésico local

O anuncio da descoberta da cocaína veio com outro ainda mais significativo. “Levando á boca uma pitada de cocaína”... , declarou Niemann, “notei, com surpresa, que a língua me ficara insensível aos sabores e ao frio ou calor...”
Com surpresa! Lá estava um produto químico produtor de anestesia local! Infelizmente Niemann só era químico e ignorava que os médicos venderiam a alma por um produto como aquele.

Também não pensou nisso o farmacêutico vienense que três anos mais tarde leu num obscuro jornal que a cocaína produzia insensibilidade na língua, na boca e na garganta. Nem o oculista alemão que hilariamente descreveu a cocaína para grupo de especialistas de moléstias dos olhos do nariz e da garganta.
Um fisiologista russo produziu uma alentada comunicação sobre a interessante insensibilidade produzida em animais por meio da aplicação de soluções de cocaína; e um médico peruano usou compressas de cocaína para suprimir a dor nas escoriações, mas não deu ao caso maior importância.
Thomaz Moreno y Maiz, antigo cirurgião do exército peruano, fez um serio estudo da cocaína. “Dizem que a evita a fome, reduz a necessidade de alimento – mas será assim?”
Maiz tomou certo numero de ratos gordos e dividiu-os em dois grupos. A um dos grupos só deu coca; a outro, coisa nenhuma – e pôs-se a observar o fim de uma lenda; os ratos em regime de cocaína morreram antes que os companheiros que estavam no regime de coisa nenhuma.
Depois tomou sapos e injetou-lhes solução de cocaína nas pernas traseiras; cutucando essas pernas com ponta de agulha o sapo não saltou, nem deu sinal de haver sentido.
“A sensibilidade das pernas injetadas desapareceu por completo”, anotou Maiz. Depois enterrou a agulha até alcançar o nervo do movimento – e o sapo moveu-se! “A sensação está completamente abolida”, anotou ele “mas, por estranho que o pareça, a motilidade persiste”.
Depois cutucou com a agulha as pernas dianteiras não injetadas – e a cada toque o animal deu um pulo de dor, Moreno e Maiz: concluíram: “A ação local desta substância é muito marcada”. E em observação á margem: “Será possível utilizar a cocaína como anestésico local”? “Não podemos concluir com base no pequeno numero de experiências, que fizemos, o que o futuro vai decidir” – e com essas palavras o bom cientista peruviano lançou a fama pela janela.
Bibliografia: Mágica em Garrafas, A história dos Grandes Medicamentos – Milton Silverman – tradução de Monteiro Lobato – Cia Editora Nacional 1943.



domingo, 17 de julho de 2016

As maravilhas e os milagres da cocaína.

Albert Niemann 1831-1917
A coca mata a fome. A coca mata a sede. A coca suprime o cansaço. A coca dá euforia. A prolongada repetição destes milagres fez com que o jovem Dr Angelo Mariani encampasse a ideia: “Se a coca faz tudo isso no Peru, por que não fará o mesmo na França? Podemos usá-la como tônico supressor da fome, do frio e do cansaço. E talvez essa amável coca cresça bem em Paris, e até em meu próprio jardim”. A coca não prosperou no clima de Paris, mas as folhas começaram a ser importadas da América em quantidade crescente. Surgiu o “Vinho Mariani”, o “Chá Mariani”, o “Elixir Mariani”, os “lozangos Mariani” e as “Pílulas Mariani”. O jovem médico esfregava as mãos de contente e expedia as drogas para os recantos do mundo, quanto mais os clínicos as experimentava, mais se entusiasmavam.
O Dr Charles Fauvel, de Paris, usava-as nas suas dores de garganta e deu atestado: “Graças ao Vinho Mariani pude restaurar a voz de muitos artistas líricos que sem esse enérgico agente não poderiam realizar seus espetáculos”.
Marius Odin (médico, professor, cavaleiro da Legião de Honra, etc.) atestou: “Esta moça sofria de fraqueza e atonia geral, dor de cabeça, tontura, vertigem, tendência para a lipotimia causada por desgostos, insônia e suores noturnos; Prescrevi o Vinho Mariani. Com um mês de tratamento o seu estado se tornou muito satisfatório”.
Um decidido padre francês, o Abbé Pullez, declarou: “Tenho prazer em chamar a atenção do público para o maravilhoso efeito da coca na fraqueza da voz; cada vez que tenho de pregar um longo sermão, tomo coca dois dias antes e sinto a melhora da suavidade e do volume da minha voz”.
Novas testemunhas chegaram, dum medico do exército francês; de Boston (“dissipa os “blues”, acalma o espírito”); de Londres (“um valioso estimulante”); de New York (“excelente tônico geral”); de Colombus, no Ohio (“um tônico para a dispepsia e a depressão nervosa”);
Aparentemente a coca curava tudo, dor do estomago, de cabeça e garganta, tontura, fraqueza, palidez, anemia, exaustão nervosa, diabetes, mal de Brigth, gota, reumatismo, malária, papo, convulsões, tuberculose, sífilis e outras.
A maioria dos médicos considerava como honestos os anúncios de Mariani, sobretudo porque neles vinha o “Cuidado com as imitações!” Mas havia outros perigos piores que as imitações, e deles Mariani não falava.
Havia uma boa razão para que aqueles produtos fossem tão efetivos. Era a existência em todos eles de um alcaloide cocaína, que em 1860 Albert Niemann extraíra das folhas da coca, na Alemanha.


Bibliografia: Mágica em Garrafas, A história dos Grandes Medicamentos – Milton Silverman – tradução de Monteiro Lobato – Cia Editora Nacional 1943

sexta-feira, 8 de julho de 2016

A descoberta da coca na Europa passou pela árvore de cacau

A coca do Peru ainda no século XV continuava na prateleira. Descoberta por pelos europeus em começo do século XVI conservou-se praticamente desconhecida, não passando de uma curiosidade botânica, até que os países sul americanos se levantaram em rebelião e varreram como domínio espanhol. A América  Latina abriu-se ao estudo de geógrafos franceses, dos naturalistas ingleses, dos botânicos alemães, dos zoologistas italianos e duma porção de americanos – e os novos descobridores descobriram a coca.
Essa redescoberta foi antecedida por uma serie de questões. “Que é essa árvore coca?” indagavam tais cientistas. A mesma coisa que a árvore de cacau do Brasil, que produz o cacau ou chocolate?

Os cientistas iam aos livros, comparava, as flores, folhas e sementes das duas plantas, e franziam o nariz e anunciavam: “Não; essas plantas não são as mesmas. O chocolate do Brasil vem da árvore cacau, que pode ser classificada como Theobroma cacao. Pelo sistema de classificação De Candolle, a coca peruviana deve ser conhecida como Erythroxylon coca. Podemos dizer mais sobre o assunto, mas, numa palavra, essas duas plantas não são a mesma.” Essa conclusão decidiu o caso.
Outro ponto debatido, e de muita importância: “Que há de verdade sobre a coca e as lendas relativas?” Realmente farão as folhas da coca os milagres referidos pelos espanhóis?”  Era tudo verdade? Era mais ainda! Os novos exploradores assombravam-se com os prodígios da coca. Eliminava realmente a necessidade de comer, beber e dormir! Suprimia a sensação de frio ou calor. Curava qualquer doença ou aflição. Transformava pobres covardes em gigantes!  Coisa boa ou má, a coca?
No coro de lôas sobre a coca a unanimidade foi quebrada por dois avisados alemães. “A coca”, disseram eles, produz estes admiráveis efeitos, sim, mas também produz outros menos heroicos. Vimos mascadores de coca e notamos o mau hálito, a palidez dos lábios, os dentes estragados e o andar vacilante. Olhos fundos e mortos, pele amarelada. Vimos o que acontece aos homens brancos que se entregam a mascação de coca: - começam e não podem interromper o habito. Viciam-se”
O grande grupo dos entusiastas chocou-se com o parecer. “Não podem interromper o habito?” Que tolice! Isso é coisa que acontece com opio. Com a maravilhosa folha de coca, é impossível”.
A coca mata a fome. A coca mata a sede. A coca tira o cansaço. A coca tras euforia. A prolongada repetição destas frases tornou o uso da planta convincente.


Bibliografia: Mágica em Garrafas, A história dos Grandes Medicamentos – Milton Silverman – tradução de Monteiro Lobato – Cia Editora Nacional 1943

sábado, 2 de julho de 2016

O éter anestésico dá lugar gás hilariante. Acontece a revolução nas cirurgias.

Duzentos e cinquenta anos mais tarde, em 1799, antes pois, da morfina de Sertuerner e quando os pacientes ainda urravam de dor sob a faca dos cirurgiões, um terceiro anestésico foi descoberto. Um jovem químico de Londres publicou um longo estudo sob o título Pesquisa Químicas e Filosóficas, Concernentes Sobretudo ao Oxido Nitroso Diflogistificado e à sua Respiração. Era o brilhante Humphry Davy, um dos maiores químicos do seu tempo, que entrava em cena.

Davy cheirava esse novo gás e admirava-se dos maravilhosos sonhos provocados. Também chegou à beira duma grande descoberta e parou. “Certa vez, estando eu com forte dor de cabeça em virtude de indigestão, anulei a dor com uma forte dose de gás” – mas Davy não deu o passo ultimo. Fez provas com pequenos animais, mas com doses excessivas; também experimentou em amigos mais cuidadosamente, e sugeriu que aquele gás podia ser de interesse para os cirurgiões. Estava, entretanto, muito entretido com outras coisas, e os cirurgiões só pensavam em “operar a pedra na bexiga em menos de três minutos”.
E lá foi o oxido nitroso, aliás, ar nitroso diflogistificado, aliás, gás hilariante, fazer companhia á coca e ao éter.
Trinta anos se passaram com os três anestésicos esquecidos, e subitamente a descoberta do clorofórmio irrompeu ao mesmo tempo em três países diferentes. Justus von Liebig pai da química moderna, descobriu-o em seu laboratório em Giessen; Souberain sintetizou-o na França; e Samuel Guthire revelou-o em Jewettsville, estado de New York.
Por mais estranho que pareça, o clorofórmio também foi fazer companhia aos três anestésicos esquecidos. Do ponto de vista químico tratava-se dum interessante composto, mas ninguém lhe deu importância.
Hoje parece absolutamente incompreensível que esses anestésicos fossem descobertos e passassem tantos anos (dois deles quase dois séculos) sem que a medicina o percebesse. Só em 1842 os doutores abriram os olhos exclamando: “Eis aqui o que andávamos procurando!”
Em cinco anos toda a grande revolução aconteceu. Quem lhe abriu as portas? Quem merece a gloria de tamanho triunfo? Este problema desafiou a argucia da Real Sociedade de Medicina da Inglaterra, da Academia Francesa de Ciências e do Congresso Americano.
O mais certo, no entanto, é quem em 1842 não existiam anestésicos em uso. “Embebede-se o infeliz os porteiros e os estudantes que o subjugem – e o cirurgião cerre os dentes e opere depressa”.
Em 1847, porém, graças ao cirurgião Crawford Long, de Atenas, na Georgia/ aos dentistas William Morton e Horace Wells, de Boston; ao químico Charles Jackson, de Plymouth, Massachussetts; e ao grande obstétrico Sir James Simpson, três abençoados anestésicos já atendiam a dor humana: éter, clorofórmio e oxido nitroso.
A entrada em cena dessas drogas foi tão impetuosa que o mundo medico ficou sem fala. A supressão da dor vinha revolucionar a cirurgia.

Bibliografia: Mágica em Garrafas, A história dos Grandes Medicamentos – Milton Silverman – tradução de Monteiro Lobato – Cia Editora Nacional 1943.