- Atravesse, disse Don Pablo. É daqui...
Tiritante de frio e respirando com força aquele rarefeito
ar da montanha, Augostin de Zarate chegou a boca da mina.
Um velho capaz indígena acocorou-se em silencio diante
deles.
- Os homens vão sair? Perguntou Don Pablo.
- Vou chama-los. Estarão aqui num instante.
De Zarate, encolhido em seu capote, procurava dominar o
bater dos dentes.
- Por todos os santos! Disseram-me em Lima que só os
cabritos monteses podem minerar ouro no Peru, mas não me disseram que também
era preciso ser urso polar. Meu sangue está se congelando nas veias.
Don Pablo riu-se
- Por causa do ouro e da prata, senhor, fazem muitas
coisas que não nos dão gosto. Mas como os incas operavam nestas minas, também
temos de fazer o mesmo.
A primeira turma de mineradores começou a sair do buraco –
índios altos, escuros, cobertos de pó. De Zarate abriu a boca.
- Olhe! Estão nus – só com uma leve tanga nos rins. Vão
evidentemente congelar...
- Nada disso, respondeu Don Pablo. Sentem-se
perfeitamente bem. Olá, feitor, venha cá. Diga a este homem quando os escravos
fizeram a ultima refeição.
O velho índio admirou-se da pergunta.
- Última refeição? O senhor bem sabe, porque é quem
manda. Eles comeram ao entrar na mina:
ontem, ao raiar do dia.
- Está ouvindo disse Dom Pablo voltando-se para de
Zarate.
- Que? Exclamou este atônito. Entraram na mina ontem, há trinta
e seis horas? Não é possível!...
- Possibilíssimo, meu caro de Zarte. Estes nativos estão
afeitos ao trabalho. Não são como os camponeses molengas lá da sua terra.
- Incrível absolutamente incrível Dom Pablo! Trabalhar 36
horas sem repouso, sem dormir... E a comida?
- Não há comida lá dentro da mina.
- E água?
- Não há água também. Eles passam sem ela.
- Não posso crer Dom Pablo! Por minha salvação juro que
isto é a coisa mais prodigiosa que jamais vi... Mas como conseguem este
milagre?
Dom Pablo apontou para os índios acocorados, verdadeiros
zumbis com um par de sacolas sobre os joelhos.
- Observe-os, senhor.
De Zarate notou que eles tomavam dum dos sacos um punhado
de folhas secas e mergulhavam-nas num pó acinzentado de outro, faziam-nas em
maçaroca e levavam aquilo à boca, ficando a mastigar com ar satisfeito.
- Que é isso?
- Isto Dom Pablo, é o segredo de tudo. Coisa que vem dos
incas. São folhas que dispensam os homens do comer e do beber, e ainda os
conservam aquecidos enquanto nós nos congelamos. Dão bravura aos covardes.
Tornam possíveis longas horas de trabalho sem cansaço – e desse modo permitem
que o ouro destes Andes seja transladado para a Espanha. Trata-se, senhor de
Zarate, da folha de coca.
- Coca? Repetiu este. A tal planta magica dos incas?
Julguei que fosse lenda.
Escreve Augostin de Zarate em seu relatório aos reis de
Espanha: “Em certos vales, entre altas montanhas, cresce uma erva de nome Coca,
pelos índios mais apreciada que a prata e o ouro... A experiência mostra que um
homem com folhas desta planta na boca não sente fome nem sede...”
Foi assim que foi apresentada a Europa a coca peruviana. Esta
planta envolveu centenas de homens num dos piores escândalos da história da
medicina, por fim tornou possível o mais surpreendente triunfo da ciência no
combate a dor.
Bibliografia:
Mágica em Garrafas, A história dos Grandes Medicamentos – Milton Silverman –
tradução de Monteiro Lobato – Cia Editora Nacional 1943
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