domingo, 19 de junho de 2016

Benção do Inferno

- Atravesse, disse Don Pablo. É daqui...
Tiritante de frio e respirando com força aquele rarefeito ar da montanha, Augostin de Zarate chegou a boca da mina.
Um velho capaz indígena acocorou-se em silencio diante deles.
- Os homens vão sair? Perguntou Don Pablo.
- Vou chama-los. Estarão aqui num instante.
De Zarate, encolhido em seu capote, procurava dominar o bater dos dentes.
- Por todos os santos! Disseram-me em Lima que só os cabritos monteses podem minerar ouro no Peru, mas não me disseram que também era preciso ser urso polar. Meu sangue está se congelando nas veias.
Don Pablo riu-se
- Por causa do ouro e da prata, senhor, fazem muitas coisas que não nos dão gosto. Mas como os incas operavam nestas minas, também temos de fazer o mesmo.
A primeira turma de mineradores começou a sair do buraco – índios altos, escuros, cobertos de pó. De Zarate abriu a boca.
- Olhe! Estão nus – só com uma leve tanga nos rins. Vão evidentemente congelar...
- Nada disso, respondeu Don Pablo. Sentem-se perfeitamente bem. Olá, feitor, venha cá. Diga a este homem quando os escravos fizeram a ultima refeição.
O velho índio admirou-se da pergunta.
- Última refeição? O senhor bem sabe, porque é quem manda. Eles comeram  ao entrar na mina: ontem, ao raiar do dia.
- Está ouvindo disse Dom Pablo voltando-se para de Zarate.
- Que? Exclamou este atônito. Entraram na mina ontem, há trinta e seis horas? Não é possível!...
- Possibilíssimo, meu caro de Zarte. Estes nativos estão afeitos ao trabalho. Não são como os camponeses molengas lá da sua terra.
- Incrível absolutamente incrível Dom Pablo! Trabalhar 36 horas sem repouso, sem dormir... E a comida?
- Não há comida lá dentro da mina.
- E água?
- Não há água também. Eles passam sem ela.
- Não posso crer Dom Pablo! Por minha salvação juro que isto é a coisa mais prodigiosa que jamais vi... Mas como conseguem este milagre?
Dom Pablo apontou para os índios acocorados, verdadeiros zumbis com um par de sacolas sobre os joelhos.
- Observe-os, senhor.
De Zarate notou que eles tomavam dum dos sacos um punhado de folhas secas e mergulhavam-nas num pó acinzentado de outro, faziam-nas em maçaroca e levavam aquilo à boca, ficando a mastigar com ar satisfeito.
- Que é isso?
- Isto Dom Pablo, é o segredo de tudo. Coisa que vem dos incas. São folhas que dispensam os homens do comer e do beber, e ainda os conservam aquecidos enquanto nós nos congelamos. Dão bravura aos covardes. Tornam possíveis longas horas de trabalho sem cansaço – e desse modo permitem que o ouro destes Andes seja transladado para a Espanha. Trata-se, senhor de Zarate, da folha de coca.
- Coca? Repetiu este. A tal planta magica dos incas?
Julguei que fosse lenda.
Escreve Augostin de Zarate em seu relatório aos reis de Espanha: “Em certos vales, entre altas montanhas, cresce uma erva de nome Coca, pelos índios mais apreciada que a prata e o ouro... A experiência mostra que um homem com folhas desta planta na boca não sente fome nem sede...”
Foi assim que foi apresentada a Europa a coca peruviana. Esta planta envolveu centenas de homens num dos piores escândalos da história da medicina, por fim tornou possível o mais surpreendente triunfo da ciência no combate a dor.


Bibliografia: Mágica em Garrafas, A história dos Grandes Medicamentos – Milton Silverman – tradução de Monteiro Lobato – Cia Editora Nacional 1943

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